fonte: Folha de SP
por Claudia Collucci
“Se você me ama, não deixe fazerem nada comigo. Me deixe ir em paz. Eu quero ir em paz”. O pedido que o poeta e acadêmico Ferreira Gullar fez à mulher dois dias antes de morrer traduz um desejo que tem se tornado muito comum: o de morrer longe das UTIs e dos tubos de respiração artificial.
Gullar estava havia 23 dias internado tratando de uma insuficiência respiratória quando, diante da piora do quadro clínico, os médicos propuseram entubá-lo. Ele recusou essa opção e pediu à mulher, a poeta Claudia Ahimsa, para não sofrer intervenções que prolongassem sua agonia, conforme ela disse em entrevista ao “Estado de S. Paulo”.
Por coincidência, nesta segunda (5), a médica de família Carolina Reigada publicou no blog “Causos clínicos – História da Medicina de Família e Comumidade” um relato parecido envolvendo a morte do pai. Ele tinha insuficiência cardíaca e, após sofrer uma arritmia seguida de desmaio, recebeu indicação de um marcapasso.
A despeito dos apelos familiares, ele optou por não ser internado e não se submeter a nenhum procedimento. “Meu pai não estava deprimido. Ele estava consciente da escolha dele. [Tinha] dificuldade de ir à esquina encontrar os amigos, depois de descer para cuidar do jardim, depois de enxergar na tela do computador, depois de sair da cama. Meu pai não gostava mais dessa vida limitada que estava tendo”, diz um trecho do relato de Carolina.
Mais difícil do que aceitar uma decisão desse nível das pessoas que mais amamos é se deparar com a falta de sensibilidade de terceiros. No dia da morte, Carolina teve que ouvir do médico que acompanhava o pai: “Vocês tinham que ter me procurado antes, ele não precisava ter morrido, é uma causa tratável, que desperdício!”.
Desperdício. Segundo a definição do Houaiss, ato ou efeito de desperdiçar; desperdiçamento; todas as coisas que não se aproveitam. Definitivamente, esse conceito não se aplica às escolhas no fim da vida.
Todos nós deveríamos ter respeitado o direito de morrer em paz, como quis Gullar e o pai da Carolina. Os médicos deveriam ser os primeiros a fazer valer esse desejo, de se colocar do lugar do paciente, de ter empatia por ele.
O Brasil tem avançado bastante em matéria de cuidados paliativos e de testamento vital, ferramenta por meio da qual podemos manifestar sobre quais tratamentos médicos não queremos ser submetidos no final da vida caso estivermos inaptos a tomar decisões diante de uma doença incurável. Mas é preciso avançar muito mais.
Ainda é gritante o despreparo das equipes médicas sobre como lidar com a morte ou com decisões como as mencionadas acima. Há cinco meses, vivi essa situação na pele. Com um câncer avançado no fígado, minha mãe foi internada para manejo da dor e para receber hidratação.
Horas depois, o médico plantonista me chamou e disse que a situação era muito grave, que provavelmente ela estava em choque séptico e perguntou o desejo da família: levá-la para UTI e entubá-la ou iniciar os cuidados paliativos, ou seja, iriam hidratá-la, cuidar da dor e da infecção, mas não iniciariam nenhum procedimento para prolongar sua vida.
Não tive dúvida alguma em decidir pela segunda alternativa. O maior medo da minha mãe sempre foi “ficar doente por muito tempo”. Um dia antes, tínhamos conversado sobre isso. Outras vezes, em situações que envolveram parentes e conhecidos, ela sempre deixou claro o desejo de morrer longe de uma UTI.
Mas, infelizmente, os cuidados paliativos propostos à minha mãe só ficaram na teoria. Enquanto aguardava a liberação do quarto, as dores aumentaram. Ela já tinha a prescrição de morfina, mas o tempo ia passando e nada de chegar a medicação, apesar dos meus insistentes apelos. Quando chegou, ela já não demonstrava mais dor. Estava caminhando para o fim, embora meus olhos de filha desesperada não tivessem enxergado isso.
Estávamos eu, minha irmã e meu pai ao lado da cama, fazendo carinhos nela, quando fomos convidados a sair do quarto porque a enfermagem iria trocar a medicação. Insisti para ficar, o que foi negado. Cinco minutos depois, entrei no quarto e pedi para ficar novamente. A enfermeira pediu para eu sair. Fiquei aos prantos na porta do quarto. Dez minutos depois, alguém da equipe passou por mim, colocou as mãos no meu ombro e disse “sinto muito”. A minha amada tinha acabado de morrer.
Eu também sinto muito de ter sido impedida de passar os últimos minutos ao lado da minha mãe, de continuar com os carinhos e com as palavras de amor até o último suspiro dela. Até hoje me pergunto qual o sentido daquela decisão estúpida da equipe de retirar a família do quarto num momento tão crucial. Inabilidade? Inexperiência? Insensibilidade?
Fiz queixa à direção do hospital, foi prometida a revisão dos procedimentos. Espero que isso aconteça de fato, que outras famílias não precisem passar pelo que passei e que os cuidados paliativos saiam das cartilhas e sejam de fato adotados por toda a equipe médica. Em cada gesto, em cada atitude, à beira de cada leito.